1. INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA

O mundo atual, de comunicação virtual e globalização, tem trazido muitas mudanças à vida e ao dia a dia das pessoas. Ademais disso, ante o mais fácil acesso aos fatos e informações dos mais diversos e longínquos lugares do planeta, permitido a ampliação do debate acerca de diversos temas, vistos com maior ou menor naturalidade conforme a região do mundo em que se encontrem os debatedores.

Assim tem sido com a liberdade de expressão, com a possibilidade ou não de um governo regular o acesso à informação (notadamente pela rede mundial de computadores), até mesmo com a democracia em si (como no Egito, ou na chamada Primavera Árabe, etc.), e ainda com relação ao tratamento dispensado aos homossexuais pelo ordenamento e pelo Estado.

Este último tema, objeto de nossa análise aqui, recebe – como natural é – diferente tratamento nas mais diversas partes do mundo. No entanto, o que mais impressiona é receber tratamento tão distinto em lugares tão próximos, não só geograficamente, como também culturalmente.

México e Argentina são exemplos de Nações que possuem formação, culturas, valores muito próximos dos nossos; contudo, abordam já o tema, neste Século XXI, de forma bem diferente do que o fazemos nós. Entendemos, na verdade, que o apreciam desde visões político-democráticas, sociológicas e humanistas sobranceiras.

  1. OBJETO CENTRAL

Em nosso país, desde recentes julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o tema das uniões afetivas entre homossexuais e seus efeitos jurídicos veio à tona, num crescendo que só faz refletir o que é a realidade social e os anseios da população. O timing da decisão foi perfeito, pois o tema foi abordado pela Corte não com “atraso” com relação aos fatos – como por vezes ocorre, mas totalmente em sintonia com o aumento da pressão social pelo reconhecimento e não discriminação de tal minoria, fazendo eles, os homossexuais, impor sua liberdade de manifestar sua sexualidade como nunca antes puderam.

2.1. NOMENCLATURA E REPERCUSSÃO DAS DECISÕES DO SUPREMO

A união estável homossexual (ou homoafetiva, ou ainda, segundo alguns autores, homoerótica – nomenclatura que não julgamos apropriada, pois expressa, em si, conotação já carregada de juízo de valor) é, enfim, um dos temas do momento na sociedade brasileira. O tema chegou formalmente ao centro do debate social desde que o Supremo Tribunal Federal, em julgamento de 05 de maio de 2011, reconheceu como legítima, perante o Direito, a união de duas pessoas de mesmo gênero (sexo). Contudo, os comentários têm girado em torno da adequação ou não de tal julgado desde a ótica do que “a maioria” aprova ou não, diante da inexistência de disposição legal específica a respeito – o que não nos parece ser o melhor enfoque para a questão, desde uma perspectiva jurídico-sociológica.

Sejam as manifestações estritamente vinculadas a opiniões pessoais, ou pretensamente fundadas na ordem jurídica e no processo legislativo pátrios, trazem sempre consigo o argumento de que, se isso ainda não é aceito pela maioria da população, e por isso ainda não foi legislado, então não deveria ser reconhecido pelo Poder Judiciário.

Ora, tal argumento, ademais de fraco, é antidemocrático e não se sustenta juridicamente em Estado que se queira intitular de “de Direito”. Quer-nos parecer que o verdadeiro cerne do tema em debate deve ser outro. A ótica pela qual se o mira deve ser outra. Será, afinal, correto, justo, excluir um grupo de pessoas (concidadãos) da ordem jurídica e social em função de sua orientação sexual? Pois é a isso que culmina a não concessão dos legítimos efeitos à concreta situação na qual vivem os casais de mesmo sexo, que se unem com propósitos de juntos viver e constituir patrimônio. Não reconhecer efeitos jurídicos à união sócio-afetiva entre homossexuais implica alijá-los socialmente.

  1. DESENVOLVIMENTO DO TEMA:

3.1. A DISCRIMINAÇÃO NA HISTÓRIA

Reconhecer a união estável entre homossexuais significa admitir que se lhes aplica o Direito vigente em nosso país (as leis, ou seja, obrigações, direitos e deveres). Não admiti-la iguala-se, concretamente, a dizer que tais pessoas estão excluídas da sociedade, dado que a eles não se aplicam as leis vigentes.

Seria, como outrora já se fez – em remotos tempos -, classificar os cidadãos em classes, às quais se aplicam umas, outras ou nenhuma lei, a depender de quem se tratava. Ou ainda, como na Roma (e parte da Grécia) Antiga, quando apenas alguns eram considerados cidadãos, com direito a voto, etc., e os demais não. Conviviam, mas não possuíam o mesmo status jurídico.

Para trazer a um passado mais recente e de nosso país, assemelha-se à situação dos filhos havidos fora do casamento: eram tidos, até bem pouco tempo, como bastardos, espúrios, ilegítimos. Não recebiam o mesmo tratamento jurídico. Eram como filhos de segunda classe (vide abordagem do tema no recente julgamento do STJ no REsp 1159242, publicado em 10 de maio de 2012, que teve bastante repercussão na mídia, especializada e comum, que condenou um pai a indenizar uma filha por abandono afetivo, em razão de tratá-la como filha, justamente, “de segunda classe”). É o que querem aqui consumar: cidadãos de segunda classe.

Cada um, cada ser humano, tem a sua individualidade, suas características, idiossincrasias, que são aquilo que, afinal, nos diferencia uns dos outros. Poder viver essa individualidade é poder ser você mesmo. Se o outro não gosta de como sou, de como me visto, de como uso o cabelo, dos lugares que frequento, etc., isso é apenas decorrência natural da vida em sociedade – e daquela mesma individualidade. Não se é obrigado a gostar ou aceitar a todos. Pode-se odiá-los até – desde que internamente; jamais, porém, fazer-lhes mal. Aí o Direito intervém. Assim, o Direito deve ser isonômico e a todos reconhecer, de maneira imparcial.

As opiniões pessoais, gostos, valores, juízos, preconceitos até (novamente, quando ainda no plano das ideias), não importam ao Direito e são livres a todos. Eu posso não gostar daquela pessoa e, por isso, não aceitá-la (internamente); o Direito não. Aos olhos da Lei, da Justiça, todos são iguais, e ela os vê indiferentemente a todos (eis o porquê de a estátua da Justiça sempre vestir aquela venda nos olhos). Amigos ou inimigos, homens ou mulheres, brancos ou negros, heterossexuais ou não, todos são igualmente cidadãos e devem ser albergados pelo mesmo ordenamento jurídico (em direitos e obrigações, claro, não é demais frisar).

3.2. O DIREITO À FELICIDADE

A busca da felicidade sói ser irrestrita e livre, por qualquer forma ou maneira que convenha ao indivíduo, limitada unicamente pela vedação de, nessa busca, causar dano a outrem. Excluído o dano (ou o risco dele, isto é, a potencialidade concreta de lesão efetiva), não há como limitar-se o exercício da liberdade com base em convenções sociais ou convicções pessoais, majoritárias que sejam, pois maioria não é totalidade – e cada um de nós deve ter o direito de expressar e viver sua individualidade, em minoria ou em maioria. Esse expressar e viver subentende isso fazer tutelado pelo Direito; do contrário, estar-se-ia relegando ao informalismo, à marginalidade, qualquer manifestação contrária à maioria reinante; à segregação, enfim. E maioria, demonstra-nos a história, é algo cambiante, sujeita a mudanças no tempo e no espaço. Maioria é, por essência, uma questão temporal e cultural: o que é hoje consenso pode não ser amanhã, assim como, provavelmente, não o foi ontem. De igual forma, o que é admitido e praticado por uma cultura pode não o ser por outras – e nem por isso se poderá afirmar estar uma certa, e outra errada. São, apenas, duas maneiras de se ver e viver as coisas.

3.3. DEMOCRACIA E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Já é hora de se reconhecer a invalidade do argumento, falacioso, mas largamente utilizado nos comentários acerca do julgamento, de que nosso Tribunal Constitucional (pois isso é o STF em tais casos) realizou funções de legislador positivo ao conferir efeitos jurídicos à situação fática de pessoas de mesmo sexo que juntas vivem, conjugando esforços para a constituição de suas vidas em comum. Será necessário lei para tudo? Se não há uma lei que diga que posso respirar, estarei proibido de fazê-lo?

Na conjuntura atual de nosso Estado, na maturidade de nossa democracia (apesar de pequenos reveses que, à vez, nos dá o sentimento de termos voltado a tempos de antanho, como casos de censura a alguns periódicos), não é mais de se admitir tal linha argumentativa. Assim acusar o legítimo exercício de um dos poderes da República é ameaçar a própria ordem social democrática. A democracia, no Estado Democrático de Direito, é a democracia não só da maioria, mas também das minorias; é a democracia da isonomia e do amplo acesso à sociedade por todos que a integram.

Esclarecendo melhor isso: não são mais tempos da democracia majoritária, apenas – na qual, se a maioria concordasse, alguém poderia ser torturado, ou supostamente em nome dessa maioria praticar tortura. Em tempos ainda recentes de nossa história nacional lembramo-nos de fatos assim. Não basta, tampouco, que a maioria rejeite a inclusão social de, por exemplo, índios, para que a esses sejam negados os direitos sociais conferidos aos demais. Se não for para e por todos, não é democracia – é autocracia (alguns mandam, definindo o que é certo ou errado, impondo isso aos demais).

A regra da maioria pode tornar-se verdadeira tirania, se imposta à vontade daqueles que a ela se oponham – ou simplesmente com a maioria não concordem inteiramente. Já no Séc. XIX falava Alexis de Tocqueville, logo acompanhado por John Stuart Mill, que a maioria pode ser verdadeira tirania, quando transgride os limites da opinião majoritária e se faz força bruta sobre a minoritária. Fala aquele autor do direito a transgredir uma lei injusta, que embora proclamada pela maioria, não deixa espaço à liberdade de pensamento dos demais. Pergunta Tocqueville: a quem deve recorrer um cidadão quando é vítima de injustiça? Quem controla a democracia da maioria?

Stuart Mill, a seu turno, afirma que a tirania da maioria está entre os males contra os quais a sociedade deve estar sempre em guarda. E um século antes, no movimento predecessor da federalização dos Estados da América do Norte, James Madison, John Jay e Alexander Hamilton declaravam que se o governo extrapolar seus limites e exercer de forma tirânica seus poderes, o povo deve apelar aos padrões definidos em sua Constituição, remediando a ferida que lhe foi causada.

Nesse contexto, viver um Estado Democrático de Direito implica que a democracia apenas o é se com suporte nos princípios e fundamentos delineados pela Constituição que rege àquele povo como Nação. E se essa Constituição preceitua determinados valores, eles devem ser tutelados, sempre e indistintamente.

Nas pertinentes palavras de Gandhi, “a democracia é uma grande instituição, e por isso mesmo está sujeita a ser consideravelmente abusada. Mas o remédio não é evitar a democracia e sim reduzir ao mínimo a possibilidade de abuso” – tarefa implementada pelos freios e contrapesos (“checks and balances”) da teoria constitucional moderna.

Numa ordem Constitucional como a nossa, há um Tribunal encarregado de proceder à interpretação definitiva e final de tais valores, esclarecer no caso concreto como eles devem ser compreendidos e observados. Como se sabe, em nosso sistema dito tribunal é o Supremo Tribunal Federal, que aqui combina as funções de Corte Recursal (cada vez em menos casos) e Corte Constitucional.

3.4. A TRIPARTIÇÃO DOS PODERES E A FUNÇÃO DAS CORTES CONSTITUCIONAIS

Quando o Supremo está a exercer suas funções de Corte Constitucional, ocupa a posição de intérprete máximo da Carta de República. Ele é, pois, a voz da Constituição.

Por isso, quando ele se pronuncia em tal condição, não está a dizer o que pensa ou não o povo, diretamente ou por meio de seus representantes eleitos (naquele momento do tempo e da história). Sua dicção, em tais situações, é justamente a voz da Constituição; ou, pela expressão latina, a mens legis (ou mais precisamente no caso, a mens constitutionis). A Corte, ali, expressa mais que a vontade presente do povo: seus anseios maiores e mais definitivos, plasmados na Carta que nos rege política e socialmente, não sujeitos a humores de momento.

Dessa forma, é absolutamente impertinente o argumento de que tal ou qual não é o sentimento da maioria da população, ou mesmo da maioria dos nossos representantes no Congresso Nacional – o falacioso argumento ad populum. Isso pois, ao assim manifestar-se, o Supremo apenas (e valorosamente) externa qual o desejo da Carta Maior naquele particular.

Sem descurar do fato de que, em casos pontuais, aquele Tribunal de fato exerceu atipicamente a função legislativa (mas aí o fez expressamente, em casos de omissão inconstitucional do legislador ordinário, em julgamento de Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Omissão ou de Mandados de Injunção), nos julgados aqui em debate disso não se tratou. Nele o Supremo resumiu-se a exercer sua mais nobre função: a de interpretar a Constituição da República.

A simples inexistência de diploma legislativo específico a disciplinar tal matéria não pode servir para acusar a Corte Constitucional de haver usurpado funções do Congresso Nacional. Fosse assim, qualquer tema não tratado expressamente por lei própria estaria impedido de ser levado ao conhecimento do Supremo (ou qualquer Tribunal). Bastaria não regular determinada matéria para impedir seu exercício; ou ao contrário, permitir sua indiscriminada prática. Assim, seriam inócuas as ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) com fulcro em princípios constitucionais, ou lastreadas “tão só” em dispositivos da Carta Magna. De outro lado, condutas imorais dos administradores públicos seriam imunes à impugnação, acaso não expressamente vedadas, inda que contrárias aos mais nobres valores na Constituição insculpidos.

Seriam, em suma, rigorosamente inúteis os princípios, assim como toda a ciência hermenêutica, se admitido o raciocínio empreendido por tais críticos: se não está expresso, inexiste – não podendo ser extraído por interpretação.

Felizmente, assim não é! Provocado a manifestar-se, pelas vias legítimas de controle de constitucionalidade, a voz do Tribunal Constitucional é a expressão da Constituição. E por mais que isso possa incomodar aos Legisladores daquele momento, tal enunciação é mais valiosa, pois reflete valores e fundamentos firmes e duros, consolidados pela experiência nacional e do Direito Comparado. Não são voláteis, como muito da produção legislativa em nosso país, cujos vetores vão e vêm com o vento, ao sabor do momento, da convulsão popular ou do desejo de mudar a sociedade à força.

Os valores (princípios, fundamentos, objetivos, direitos e garantias fundamentais – preâmbulo e artigos 1º, 3º, 4º, 5º, et al) plasmados em nossa Lei Maior, esses sim, possuem alta carga de definitividade. Eles devem nos inspirar e inspirar o futuro, por meio de interpretação evolutiva e contextualizada ao tempo. Do contrário, teríamos que mudar a Constituição a cada mudança social – o que sabemos ser não só indevido, mas altamente temerário e periculoso.

Desse vício de se legislar em profusão, criando esse monstro sem nome que é nosso arcabouço legislativo, cujo tamanho real é desconhecido, surgem problemas como esse – digno de uma dependência que, por natural, não liberta e não permite evolucionar. Ao contrário, só gera conflito, muitas vezes entre as próprias normas, que contradizem umas às outras, eis que não guardam coerência entre sim. Tal dependência em legislar minúcias, sem deixar espaço à interpretação, adaptação, amadurecimento e coesão redunda noutro tipo de desvio: o da tecnocracia – que, no entanto, deixa de lado a produção de normas que realmente importariam à sociedade. Não há harmonia no sistema.

Afinal de contas, pelo valor e consistência de seu substrato principal, temos que as normas e princípios constitucionais possuem uma só direção, quando tratamos de reduzir toda a carga valorativa constitucional a um núcleo duro: garantir o primado da dignidade da pessoa humana. Fala até a doutrina, mui acertadamente, que a constitucionalização de novos direitos surgidos do evolver social é nada além de garantia decorrente da proteção da dignidade da pessoa humana.

Os arestos do Supremo Tribunal são, em tais situações, nada mais que manifestação hodierna do que nossa Norma Máxima quis dizer desde sua origem (05 de outubro de 1988), mas não tinha os vocábulos bastantes para fazê-lo. Se ela fosse (ainda) mais prolixa, o teria dito. Esta é a mensagem que se deve ler ao ouvir uma decisão do Supremo no exercício do controle de constitucionalidade.

A questão aqui analisada assemelha-se à da (necessária) transcendência à materialidade na interpretação sobre a extensão da imunidade dos livros (jornais e periódicos, art. 150, IV, ´d´ da Carta de ´88). Embora o Supremo ainda não tenha se manifestado definitivamente a respeito, outras Cortes e magistrados já tiveram a oportunidade de fazê-lo, entendendo que a intenção do legislador foi imunizar o suporte sobre o qual se produzisse um livro, tendo por base o fomento à difusão da cultura. A expressão física do livro si é irrelevante; importante é a intenção de facilitar o acesso a tais produtos culturais. Não podiam os constituintes, em 1987-88, vislumbrar que, anos depois, teríamos livros que não fossem impressos em papel. Por isso, a todos os formatos – digital, em cd, etc. – deve ser estendida a regra imunizatória, sob pena de restringir-lhe indevidamente o alcance.

Aquela Corte, que também cambia com o tempo (já que seus membros não são imortais como os acadêmicos da ABL), tem ainda a vantagem de poder, com a marcha da história, reinterpretar a Constituição à luz dos tempos. Isto, frise-se, nada mais é que elementar exercício de hermenêutica, desde sempre: a lei não é apenas o que dizem suas palavras (a letra fria da lei), mas o que ela quer dizer naquele momento, naquele contexto, naquela situação.

3.5. INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO E SEUS VALORES

De forma precisa e sucinta enunciou José Afonso da Silva a questão: a “interpretação literal não presta obséquio à Constituição”. Aplicá-la literalmente é retirar toda a possibilidade de extensão que possui intrinsecamente. Reduz seu valor, sua carga valorativa e eficacial, restringindo-a a âmbito não só menor, mas que pode resultar num espectro que não foi o desejado.

Em outro dizer: a interpretação literal não só reduz, como pode realmente conduzir a aplicação distorcida e até mesmo contrária ao real objetivo da vontade da norma. “Pois a letra mata, mas o Espírito comunica a vida”.

A interpretação literal é útil tão só como passo inicial do processo interpretativo, consistindo apenas parte da cadeia da espiral hermenêutica (“círculo hermenêutico”, na nomenclatura de José Afonso). É somente ao fim de tal processo que se terá atingido, por meio também da análise contextual, a vontade atual e premente da norma.

A Constituição é um objeto cultural, pelo que como tal deve ser interpretado. Dissociado do contexto sociocultural maior em que se encontra, perde todo sua significação. A Carta é, em si, como bem o disse – uma vez mais – o insuperável mestre José Afonso da Silva, um rico repositório de valores e possibilidades interpretativas.

Daí vir à baila aqui o princípio da coerência da Constituição. Conforme tal princípio, a Constituição é “um sistema normativo fundado em determinadas ideias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes”, cuja unidade (coerência) impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas, guiado pelos princípios fundamentais, gerais e setoriais, inscritos ou decorrentes da própria Constituição.

Por isso se diz que a norma (que não é o mesmo que a lei) “é o produto da interação entre o enunciado normativo e a realidade fática”, e “o Direito é aquilo que o Tribunal competente diz que ele é”.

Assim, absolutamente injusto com pronunciamentos recentes (e modernos, avant garde) daquela Casa dizer que foram perpetrados em usurpação de função do Legislativo. Nada mais impróprio juridicamente. O que faz em tais casos o nobre Sodalício é tão somente puro exercício de suas competências constitucionais. Mais especificamente, aquela prevista no artigo 102, I, ´a´ (e seu § 2º).

Acusações semelhantes não foram feitas quando a mesma Casa, no exercício da mesma competência (“função”), disse que era possível o exercício de greve pelos Servidores Públicos, e que, na ausência de norma regulamentadora, aplicar-se-ia a lei de greve dos trabalhadores “celetistas”.

Ou ainda, quando determinou que o aviso prévio proporcional deveria ser, vejam só, proporcional.

Claro, houve críticas a tais decisuns também. Mas não do mesmo teor, pela mesma fundamentação. Tampouco provinham de juristas do mais alto calibre, mas proferidas com parcialidade e preconceito, calcadas em juízos pessoais, despidos da técnica e lucidez que normalmente se revestem seus pareceres.

Sim, porque muito preocupa, no caso do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, a estatura de alguns de seus críticos, que nada obstante grandes cultores do Direito ajudaram a corroborar o entendimento (errôneo, conforme demonstrado) de que teria ali o Supremo excedido suas atribuições, afrontando a tripartição dos poderes e a democracia!

Vindo de assim nobres e cultíssimos juristas, alguns deles da mais alta estirpe dos nossos cientistas do Direito, natural que os que não são da mesma arte recebam tal crítica como verdade inconteste. No entanto, assim não é.

Chegaram mesmo a afirmar que não poderia ser reconhecida a união estável de indivíduos do mesmo sexo; ela, como uma das formas juridicamente reconhecidas de constituição de família, só seria admissível àqueles que podem se reproduzir. Do contrário, não são casal, não são família.

Tal raciocínio, por extensão, exclui também do conceito de família os inférteis, visto que estes não possuem capacidade reprodutiva. Exclui ainda os que, por enfermidade, tenham perdido tal capacidade. Assim, aqueles que passaram por quimioterapia e perderam a fertilidade de seus órgãos reprodutores, já não mais constituirão legítima família. Imagina-se que o mesmo seja aplicável aos homens com disfunção erétil, ou aos casais que tenham optado por não ter prole. Nessa senda, solteiros não teriam direito à proteção do bem de família, pois seria um contrassenso aplicar a ideia de família a alguém que vive sozinho.

Acresça-se, ainda, que “família não é um fato da natureza, mas da cultura”, e consequentemente passa por constante mutação, pelo que é “questão de justiça social” reconhecer suas novas formas de manifestação. “O Direito e a Justiça não podem deixar de dar respostas aos novos arranjos familiares, quer se goste ou não, sob pena de repetir injustiças históricas”.

3.6. HOMOSSEXUALISMO, IGUALDADE E O DIREITO À PERSONALIDADE

Olvida-se que o homossexualismo remonta a tempos imemoráveis, e que durante boa parte do Império Romano foi prática tão difundida que era quase tão comum quanto as heterossexuais.

Convém esclarecer, até mesmo de forma a dar mais solidez e imparcialidade aos argumentos aqui expendidos, que este autor é católico, muito praticante e envolvido com a Igreja, casado com uma mulher, e pai. Não se advoga, portanto, em causa própria, por assim dizer. Busca-se tão só, como humano, que todos os demais sejam assim reconhecidos e postos em pé de igualdade face à lei, à Constituição. Humanos todos, por essa característica fundamental nos igualamos, devendo por tal condição ser aceitos, com cada diferente identidade, orientação e característica. Diferenças não são divergências.

Para além do quanto estatui o simplista raciocínio de que, se não foi legislado, não é aceito e não pode ser reconhecido, entende-se que em realidade, dentro da sistemática da tripartição dos poderes, ocorre precisamente o contrário. Explica-se.

Se o Poder é uno, mas tripartem-se suas funções, a fim de conferir maior eficiência ao exercício de cada um deles e privilegiar a fiscalização de um pelo outro (em apertada síntese da moderna visão desse conceito), asseverar que o Judiciário invadiu a esfera de atribuições do Legislativo equivale a diminuir a importância de um Poder frente ao outro. Equipara-se, efetivamente, a dizer que o Judiciário é desnecessário, pois basta o Legislativo para dizer o que é correto ou justo.

Na verdade, o julgado fortemente confirmou a separação dos poderes, afirmando que havia iniquidade em tal situação e que nossa Ordem Jurídica não poderia com isso conviver. Para isso afirmar não precisa que haja lei; até porque, lei poderia ser produzida que dissesse, v.g., que a homossexualidade é proibida, e atos de amor homossexual são criminosos. Como se vê, falacioso e tendencioso o argumento é, não resistindo a uma aprofundada análise do sistema e dos valores constitucionais que nos regem. Verdadeiro sofisma, não se sustenta, enfim, ante o teste de constitucionalidade.

Lembremo-nos que a escravidão já foi legal e constitucional. Devêssemos inapelável obediência ao rigor da lei, ainda teríamos a escravidão, mulheres não votariam, e daí por diante. Aliás, nem discutindo isso estaríamos, pois não haveria controle de constitucionalidade. Como disse Santo Agostinho, o santo e nobre pensador de tardia conversão, lei injusta não é lei alguma. Injusta, na situação em análise, seria a interpretação dada. E é verdadeiro dever, já o disseram Gandhi e Martin Luther King Jr., contestar o injusto.

Com base em tais razões que se diz ter o aresto da Corte Suprema estabelecido, uma vez mais, a extensão dos valores da Carta Constitucional, zelando pelo livre exercício da função que lhe incumbe na tríplice divisão dos Poderes Constitucionais, e com isso mantendo a unicidade do Poder do Estado. Sim, porque o Poder do Estado é uno, mas não totalitário. Derrubado um de seus tripés, isso restaria: totalitarismo, no qual a um dos Poderes tudo é possível, sendo os demais meros figurantes, ou existindo apenas para conferir aparência de liceidade ao que já não é mais democrático.  

Por isso, distorcer o histórico e marcante julgamento, taxando-o de abusivo, é reduzir os iguais direitos dos demais concidadãos brasileiros, apenas por possuírem diferente orientação sexual; porque afora isso, continuam a ser compatriotas intitulados a igual tratamento na e perante a lei. Sim, e ainda porque, diferentemente do que equivocadamente difundido, não se autorizou o casamento entre homossexuais.

O que fez o Supremo foi reconhecer uma realidade de fato e albergá-la em face do Direito: essas pessoas vivem em união (sociedade) afetiva com outras, de mesmo sexo, e na vigência de tal sociedade constituíram patrimônio e adquiriram direitos (e obrigações). Exatamente como um homem e uma mulher que não se casam, mas vivem juntos – e têm tal situação fática regulada e protegida pelo Estado.

Novamente citando Mohandas Gandhi, “não vamos levar a teoria do mandato a extremos absurdos e nos tornarmos escravos das resoluções de maiorias. Seria a restauração da força bruta, numa forma mais virulenta. Para que os direitos das minorias sejam respeitados, é preciso que a maioria tolere e respeite suas opiniões e ações. O dever [democrático] da maioria é providenciar para que as minorias possam se manifestar da maneira apropriada e não fiquem expostas a insultos”.

Essa função exerce muitas vezes o Judiciário, ao dizer, em casos concretos de processos subjetivos ou objetivos, se ali há ou não justiça, equidade, isonomia, respeito aos princípios, etc. Trata-se da função contramajoritária que exerce, como um dos poderes republicanos, a Suprema Corte – função essa que trata de igualar, em face dos princípios constitucionais, situações indevidamente desigualadas.

3.7. MINORIAS NA DEMOCRACIA E A CONSTITUIÇÃO EM EVOLUÇÃO

Foi com fundamento nesse preceito que a Corte, em julgado de 1º de julho de 2010 (Pet. 3388, Relator o Ministro Ayres Britto), abordando a questão das minorias excluídas na sociedade contemporânea, falou em “efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o protovalor da integração comunitária”.

Ou seja, a integração à comunidade social, decorrente da concretização da isonomia, é um valor que precede aos demais; por isso protovalor: do grego antigo, primeiro, antes. Disso decorre que interpretar a Constituição para integrar grupos excluídos não é uma faculdade; antes, é um dever do intérprete e do aplicador. Não existe a opção de identificar-se uma desigualdade, uma classe excluída, e não se corrigir tais falhas. As cartas constitucionais, se não se adaptam às mudanças e aspirações que emanam do seio social, perdem força normativa. Tornam-se, perdendo vinculação com a cambiante realidade, aquela reles folha de papel de que falava Lassale.

A Lei Fundamental só adquire força ativa, nos dizeres de Konrad Hesse, se seus intérpretes e aplicadores (“os principais responsáveis pela ordem constitucional”, em suas literais palavras) adquirirem a consciência de ser imprescindível fazer com que ela valha eficazmente. Dito de outra forma: a força normativa da Constituição só trasmuda-se em força ativa quando incorporam, aquelas pessoas (agentes políticos), “vontade de constituição”, não apenas “vontade de poder”.

Sem essa vontade de fazer a Constituição ser e permanecer, valer efetivamente, com plena capacidade de regrar a comunidade em transformação, tornar-se-á ela inócua, ultrapassada e, em último grau, repudiada. Ela deve “estar em constante processo de legitimação” para que mantenha sua força vinculativa, fazendo-se sentir como instrumento que traz segurança aos súditos do Estado, protegendo-os de abusos e desvios.

Porque, afinal, o que decorre do não reconhecimento de tais uniões é a não aplicação de qualquer norma jurídica ao caso; ou melhor, no dizer de Nelson Nery Jr., a não aplicação da norma jurídica adequada. Se há um instituto jurídico aplicável a situação semelhante, deve-se usar da analogia para colmatar a lacuna; afinal, o ordenamento não pode ser lacunoso, e para tanto se prestam os métodos integrativos. O impasse da ausência de solução normativa específica deve ser resolvido da melhor forma, em consonância com o ordenamento como um todo e seus valores. Não se pode deixar cair ante um sofisma, que apresenta uma aparente, mas falsa, solução.  

Como não é razoável admitir que prevaleçam soluções discriminatórias e intolerantes numa sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos como a nossa, fundada na harmonia social e tendente a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, devemos fazer uso de métodos interpretativos ou integrativos da legislação até chegarmos a uma solução condizente com tais máximas (inscritas no preâmbulo de nossa Carta Maior).

Assim, se há um instituto que regula a situação daqueles que convivem publicamente, de forma contínua e duradoura, unindo-se como família fossem (art. 1.723 do Código Civil), por analogia deve ele ser aplicado ao caso da união de pessoas do mesmo sexo. Não há fundamento constitucional para conclusão diferente. Afinal, são duas pessoas que se unem, com compromissos de fidelidade e respeito, com vida em comum (coabitação) e mútua assistência (deveres do casamento, art. 1.566 do mesmo Codice). E se reconhece-se como entidade familiar a pessoa solteira, para fins de proteção do bem de família (Súmula 364 do Superior Tribunal de Justiça), também se o deve fazer para chancelar a união entre dois homens ou duas mulheres.

“Funda-se a analogia (…) no princípio da verdadeira justiça, de igualdade jurídica, o qual exige que as espécies semelhantes sejam reguladas por normas semelhantes; neste sentido aquele processo tradicional constitui genuíno elemento sociológico de Aplicação do Direito” – ninguém menos que Carlos Maximiliano. A ausência de uma solução jurídica que pacifique esse conflito social redunda em condenar tal grupo de pessoas a párias. Cidadãos sem pátria, sem Direito que os albergue.

Afinal, se não são reconhecidos direitos a um grupo de cidadãos, isso também pode ocorrer com outro, logo com outro, até pronto vermos novamente instalada ordem ditatorial. Segundo Pimenta Bueno, “a lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania”.

Como naturalmente se conclui, uma tal discriminação contraria a ordem constitucional, não é uma discriminação positiva. Absolutamente não! Opostamente, aliás. Seu critério de discrímen (na preciosa nomenclatura e raciocínio de Celso Antônio Bandeira de Mello) é írrito aos valores, fundamentos e objetivos de nossa Carta Mãe (preâmbulo e arts. 1º e 3º). Por isso que, provocado, o Supremo não podia deixar de manifestar-se, silenciando ante à situação concreta que deixava irmãos brasileiros alheios à ordem jurídica positiva.  

3.8. UNIÃO ESTÁVEL, RECONHECIMENTO, CASAMENTO E IGREJA

Não fala o julgamento (nem a realidade), tampouco, em casamento perante a Igreja. Aí, a questão toma outra dimensão e direção. E aí, não tem jurisdição o Supremo. Tratam o tema e o julgado de Direito Civil e Constitucional, não Direito Canônico.  Não cremos, no entanto, que a eles (homossexuais) isso interesse. O que tampouco nos importa aqui. O que estava em jogo – e ainda está, pois restam muitas conquistas (fáticas, efetivas, práticas) a serem galgadas – é o reconhecimento pelo Direito, pelo Estado e pela sociedade de uma situação de fato.

A isso procedeu a Corte Constitucional, de altiva maneira aos olhos da igualdade, da isonomia, da não-discriminação. Agora essas pessoas podem ter sua vida, seu patrimônio, seu seguro de saúde e previdência, seu clube, com amparo na Constituição. Até a sociedade aceitar isso, certamente um tempo haverá. Como houve com os negros, e com as mulheres, que não eram cidadãos em plenitude. Mas agora ao menos com a Lei essas pessoas, Homo sapiens como todos os demais – brancos, negros, amarelos, azuis ou cor de rosa – podem contar. É um começo.

Dessa forma, reconhece-se a união afetiva de duas pessoas (cognominada pelo Direito de União Estável) que possuem o propósito de juntas construírem suas vidas, atribuindo-lhe efeitos jurídicos e patrimoniais.

Natural decorrência disso é a possibilidade de conversão dessa jurídica união, aos que assim o desejarem, em casamento civil. Isso prevê o artigo 226, § 3º, da Constituição da República. Casos alguns já há em que tal pleito foi formulado perante certos juízos, tendo sido em alguns casos aceito, em outros, recusado (o que, a nosso ver, afronta a decisão da Corte Máxima da Federação).

Afinal, se a união estável há de ser reconhecida, e a Constituição impõe a possibilidade da conversão de união estável em casamento, não há razão jurídica para isso ocorrer também com as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Essa seria outra discriminação: reconhecer-lhes a união estável, com os direitos e obrigações dela decorrentes, mas não dar-lhes o instituto jurídico em sua inteireza. Se devem poder ter suas uniões assemelhadas ao casamento, devem também poder nele convertê-las oficialmente. Pretender à união oficial entre homem e mulher dar um nome (casamento), e outro à união oficial (pois reconhecida pelo Direito) entre pessoas de mesmo gênero é novamente incidir em preconceito, em hierarquização de seres humanos.

Questão distinta, conforme mencionado, é o casamento religioso. Disso, não fala nem poderia falar a decisão. Seara outra, alheia a interferência judicial, não se sujeita às imposições da ordem jurídica. Caberá a cada igreja, dentro dos dogmas e valores de sua fé, decidir se permitem ou não a seus fieis unirem-se sob a benção de seu Deus, quando o fizerem em igualdade de gênero.

O que já não é mais aceitável no mundo de hoje, Século XXI, é que, por contrariar a opinião geral, alguns sejam tolhidos até mesmo de seu direito à propriedade privada (direito e garantia fundamental, tutelado pela Constituição nos artigos 5º – caput e inc. XII – e 170, inc. II). Sim, pois afinal, se a união não é juridicamente reconhecida, o consorte não tem direito à meação do patrimônio adquirido durante a sociedade estabelecida. Nega-se lhe, com isso, referida garantia. Como outrora, às mulheres não casadas “no papel”.

A outros companheiros, em sociedades constituídas (de fato ou de direito, uniões estáveis, sociedades empresárias ou casamentos) de semelhante maneira, é assegurada tal garantia. Reconhece-se, inda que o patrimônio tenha sido registrado apenas em nome de um deles, e até mesmo por fruto do labor de um só, que isso possível foi somente pela existência do outro, que ficava e cuidava de outras tarefas. Se nossa sociedade progrediu já ao ponto de reconhecer tal direito às esposas e companheiras mulheres (egressa de sistema patriarcal machista), e confere hoje até o direito de companheiro ou cônjuge usucapir o imóvel onde habite, quando o consorte abandona o lar (novo art. 1.240-A do Código Civil, L. 12.424/11), como não garantir tão só aos homossexuais essa possibilidade? Odiosa e inconstitucional discriminação é, eis que frontalmente viola a isonomia e a dignidade humana – dentre tantos outros princípios vetores de nossa Magna Carta.

Devem-se compensar, pela hermenêutica e exegese constitucionais, históricas discriminações. Por isso, é dever do intérprete-aplicador fazer a norma ter total eficácia, em harmonia com e estimulando os avanços sociais, já efetivados e a se consagrar (relação de coordenação entre realidade fática e jurídica). Refuta-se, de tal maneira, o engano a que leva o argumentum ad numerum.

3.9. DIREITO E DIVERSIDADE

Não pode o intérprete – sobremodo o constitucional – olhar e aplicar a Carta com os olhos do passado. Como Carta Política, diploma máximo que limita transgressões e indica direções, ela deve ser analisada e efetivada com os olhos de hoje, visando ao amanhã. Nessa linha, de acordo com o máximo intérprete constitucional, a exegese do Diploma Maior não pode levar a um retrocesso, à perda de identidade. De sua concreção prática deve resultar, sempre, um ganho cultural, de modo incessantemente cumulativo (princípio da vedação ao retrocesso). Nas simples – mas consistentes – palavras do Ministro Ayres Britto, a integração social de uma minoria historicamente discriminada deve ter como produto “uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda”.

Sem dúvida, a não se reconhecer tais uniões de fato e os direitos (patrimoniais e outros) delas decorrentes, estar-se-ia a constitucionalizar uma perda social, um retrocesso. Seria a institucionalização do preconceito, da discriminação. Manter-se-ia, oficialmente, a segregação social e cultural de uma minoria. Conforme dito alhures, pode um indivíduo ter preconceitos, no plano das ideias; o que não se há de admitir é que o Estado, a Nação, como manifestação oficial de seus princípios e valores, reconheça um desrespeito à dignidade da pessoa, declarando-a, formalmente, não aceita tal como é. Seria, mutatis mutandis, repetir a fórmula no nazi-fascismo: há pessoas que pertencem à raça “correta”, e há outras que não, e essas devem ser excluídas, recriminadas, dizimadas.

O diferente enriquece, dá cor e variedade. A diferença não agride (não deveria!) pessoas nem valores, pois valores não compactuam com descriminação entre iguais. Diz a sabedoria popular: “que seria do branco, se todos gostassem do preto?”. Diferenças não precisam transformar-se em divergências.

Por isso, reconhecer efeitos jurídicos à situação de fato é verdadeiramente integrar tais pessoas, tornando-as, somente a partir de então, amplamente envolvidas no contexto social. Concede a decisão, por seus efeitos, cidadania plena a esse grupo de brasileiros. Franqueou-se a eles, enfim, amplo acesso à ordem social e jurídica.

Ademais disso, é importante a menção e difusão dos Princípios de Yogyakarta, diploma produzido pela comunidade jurídica internacional em encontro realizado no ano de 2006, na Indonésia, em cidade de tal nome. Nele elencam-se uma série de preceitos que devem servir de orientação, para o direito interno e o internacional, ao lidarem com questões relativas à orientação sexual e os direitos das minorias não-heteressexuais. Tal carta principiológica estatui o direito ao reconhecimento e à constituição de família independentemente daquela orientação, e foi citada pelo Supremo Tribunal Federal nos julgados aqui comentados – e em outros que se seguiram.

  1. CONCLUSÃO

Em resumo, afirmar que somente o Congresso Nacional poderia disciplinar a situação dessa minoria excluída, por serem seus integrantes os “representantes eleitos” do povo – “a voz do povo”-, é não só negar a realidade (inclusive da distância que há entre os parlamentares e os cidadãos-eleitores), porém ainda mais, é negar a Constituição. Negar-lhe qualquer efeito, e esperar que tudo provenha do Poder Legislativo. Como fosse ele a única fonte irradiadora de Direitos e Garantias ao povo brasileiro. Recusam-se a aceitar, os que assim dizem entender, que há direitos e valores que são plenos e basta sejam reconhecidos para surtirem efeitos – dispensando expressa previsão legislativa para serem exercidos. São princípios-vetores da Constituição que emanam por todo o corpo normativo, suplantando tudo quanto lhe for contrário. Possuem eficácia plena e vigência imediata, dispensando outras provisões normativas para irradiarem seus efeitos.

Ademais disso, o reconhecimento de uma situação fática pelo Judiciário, em controle concentrado de constitucionalidade, construindo o evolver da Constituição (Mutação Constitucional), serve também como forma de estímulo à produção legislativa. Haverá, assim, retroalimentação de um Poder pelo outro, em função do reconhecimento de uma nova necessidade social, e o avanço na interpretação e aplicação da Constituição. Assim como pode o Judiciário mudar seu entendimento em função de uma nova condição cultural reconhecida pelo Legislativo, é possível também se dar o contrário. E isso é saudável para o Estado, para a Democracia, para o Povo. Procedendo-se assim, leva-se ao máximo a finalidade da tripartição das funções do poder estatal.

Compreendemos que não há maldade nos corações de muitos que rejeitam essa compreensão. Vivemos tempos muito diferentes, com muitas mudanças – a internet, que praticamente forçou uma versão mais globalizada do mundo, com uma verdadeira realidade cibernética à parte da realidade táctil; notadamente aos mais velhos, difícil de acompanhar. Por vezes até, de impossível assimilação o conjunto de todas as mudanças.

Isso, no entanto, não constitui justificativa para a postergação de uma mudança que urge. A hora para a liberdade, a hora para a justiça e a igualdade, é sempre – e sempre – AGORA! Não se espera um melhor momento, ou uma dada iniciativa, de quem quer que seja, para garantir direitos e isonomia a quem está em situação de hipossuficiência. Curial que estejamos todos em pé de igualdade para somente então, garantido o piso mínimo de direitos, verificar-se o que pode ou não ser pertinente para distinguir o que é diferente. Antes de atingida situação de mínima igualdade não se discutem outras questões – que redundarão em mero formalismo preciosista, a serviço apenas da manutenção da situação de déficit de direitos para uns.

 

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