I. Introdução

Diante dos repetidos escândalos que têm assolado o Congresso Nacional nos últimos tempos, surpreendente a repetição, por parte dos mais diversos parlamentares – filiados a diferentes partidos e ideologias – do recurso ao argumento de que esta ou aquela prática, ainda que pareçam reprováveis aos olhos de todos, não é ilegal, razão pela qual não teriam por que não ser admitidas. Deste modo, tais condutas estariam devidamente legitimadas sob o ponto de vista jurídico – na superficial interpretação realizada por razoável parcela de nossos legisladores.

Por haver se destacado no noticiário nacional, tome-se o caso da destinação a fins privados de passagens aéreas das cotas mensais respectivas de deputados e senadores. Infelizmente, muitos outros exemplos há, como o uso de celular fornecido pela Casa Legislativa por filha de deputado. Todavia, não cabe aqui discuti-los casuisticamente.

De fato, inexiste qualquer lei, no ordenamento jurídico brasileiro, que trate especificamente de vedar a parlamentares a “terceirização” de passagens aéreas custeadas pelo Estado. No entanto, há que se lembrar que o conjunto normativo vigente no país compreende também princípios, que devem também vincular a atuação do agente público. Dentre estes, um de notável importância é o da moralidade administrativa, que deve submeter aos três poderes do Estado, além também dos particulares em colaboração – que quando atuarem em tal sentido são temporariamente tidos como agentes públicos.

Por isso iremos aqui apreciar, dentro da perspectiva da eficácia normativa dos princípios, implicações práticas da aplicação do princípio da moralidade na Administração Pública. Tendo como ponto de partida a evolução da dogmática e da hermenêutica jurídicas, que se desligam do estrito positivismo outrora imperante para alcançar um visão principiológica do Direito, analisaremos como em nosso ordenamento – e no atual momento histórico-socio-político – podemos vincular condutas de agentes públicos por meio de exigências normativas maiores.

Tendo em conta que os princípios sobrepairam ao Direito, irradiando sua eficácia por todos os ramos em que se divide esta Ciência (para fins propedêuticos apenas), adentraremos, de forma prática, pragmática, na sua imposição direta a toda espécie de ato jurídico: atos-norma, atos-contrato (negócios jurídicos), atos-fatos, atos-conduta, etc. Vê-se que não se tem mais os princípios como preceitos programáticos, vazios de conteúdo eficacial coativo. Não. São, eles mesmos, preceitos que subordinam e se impõe.

Assim, de forma específica veremos como o princípio da moralidade, previsto em nossa Lei Maior, prescinde de previsão legal outra para ser aplicável à espécie. Deixa-se aquela interpretação, dantes comum, de enxergar a Constituição pelos olhos da lei, para então enxergarem-se (e interpretarem-se e aplicarem-se) as leis e atos pela ótica da Constituição. Esta, compõe-se de elementos normativos estritos – as regras, e de elementos normativos mais amplos – os princípios. Estes, vinculam a vida em dada sociedade, não só tanto quanto as regras estritas, como na verdade mais do que elas. No embate entre uma regra comum e uma regra principiológica, prevalecerá sempre esta, que é indicativa dos caminhos e dos valores maiores de uma Nação.

Desse modo, veremos que uma conduta, também de um particular mas sobretudo de um representante do Estado (em sentido bem amplo), submete-se à ordem principiológica, podendo seus atos sujeitarem-se a controle estatal (jurisdicional ou não) quando dela refugarem. Enfim, exporemos a conclusão de que, em um Estado que se queira intitular Democrático, a conduta dos homens públicos (externada em normas ou em atos) submete-se ao pálio da lei, mas sobremaneira ao império dos princípios. A conduta deles desviante não só enseja anulação como também impõe a respectiva responsabilização pessoal de seu feitor.

Esta é, de início, a idéia que permite questionar a admissibilidade jurídica das práticas dantes citadas. Assim, será objeto central deste trabalho demonstrar a antijuridicidade de uma prática cujos autores apregoam “não ser ilegal”.

II. Direito e Moral

Se, no passado, a moralidade administrativa já foi confundida com a mera observância da legalidade, tampouco é nova a distinção entre moral e direito, que comporiam dois círculos concêntricos: aquela constituiria o maior e o outro, o menor. Disso resultaria, então, a idéia de que a moralidade faria parte do âmbito de discricionariedade das ações do administrador, não podendo ser objeto de controle jurisdicional.

Esta visão, porém, está superada no Brasil desde meados do século passado. Num tempo em que ainda se compreendia o texto constitucional como mero arcabouço principiológico programático – logo, desprovido de aplicabilidade direta – a Lei 1.079/50 passou a definir como crime de responsabilidade a inobservância da probidade administrativa em atos do Presidente da República e de Ministros de Estado (art. 4°, V; art. 9°). Mais tarde, a Lei 4.717/65 tornou ilícito (e nulo) o ato administrativo praticado com fim diverso do previsto “explícita ou implicitamente” na regra de competência (art. 2°, par. ún., al. “e”), e permitiu a qualquer cidadão reclamá-lo mediante ajuizamento de ação popular – a qual, frise-se, tem o propósito precípuo de proteção do patrimônio público e foi erigida ao status de garantia fundamental em nossa ordem constitucional. Os citados diplomas, vale dizer, seguem em plena vigência.

III. Moralidade Administrativa

A atual Constituição Federal, de outra parte, consagrou a moralidade como um dos princípios reitores da administração pública “de qualquer dos Poderes da União” em seu art. 37. Assim sendo, o texto constitucional, com sua conhecida força normativa superior, evidentemente já seria bastante para desafiar a legalidade pretendida por deputados e senadores para com o desvio de finalidade de passagens aéreas de suas cotas à revelia do interesse público.

Deste modo, não só nenhuma norma, mas também nenhum ato proveniente da Administração Pública subsistirá validamente se não encontrar como fundamento último de validade nossa Carta Maior. Configura isto o princípio da conformidade, segundo o qual todos os atos do Poder Público devem conformar-se (render forma) às normas e princípios constitucionais. Isto é o que impõe a superioridade normativo-hierárquica do diploma constitutivo de um Estado.

Mas não é só. Também a Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo em âmbito federal e possui aplicação manifesta perante cada um dos Três Poderes políticos em suas funções administrativas (art. 1°, § 1°), impõe o dever de obediência à moralidade na administração pública (art. 2°, caput) e alude à necessidade de “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa fé” (art. 2°, par. ún., inc. V). Também o fez a L. 8.429/92, a chamada Lei de Improbidade Administrativa, já desde seu artigo 4º, que preceitua que todos os agentes públicos, independentemente do grau hierárquico que ocupem, devem velar pela moralidade em seus atos (ademais de também elencar, expressamente, os princípios da legalidade, impessoalidade e publicidade). Trata-se de obrigação que se impõe, dever que, descumprido, pode gerar responsabilização mesmo na ausência de prejuízos materiais ao erário ou enriquecimento ilícito do agente.

Tenha-se, então, como premissa fundamental o fato de a noção de moralidade administrativa proibir desvios de finalidade ou abusos de poder na atuação de agentes públicos, cujos atos vinculam-se, inexcedivelmente, à observância do interesse público. Nessa medida, a distribuição de passagens aéreas a familiares, amigos ou mesmo correligionários em viagens particulares configura flagrante afronta a esse princípio. De outra parte, há que se observar que a moralidade administrativa, ante as circunstâncias supra-expostas, constitui princípio jurídico – e não meramente um postulado moral –, produzindo, assim, efeitos jurídicos; até porque a tutela da ordem moral não caberia aos textos constitucional e infraconstitucionais em que é trazido. Trata-se, pois, de um comando dotado de plena imperatividade, tanto mais quando se reconhece, nos tempos hodiernos, a normatividade dos princípios e cláusulas gerais emanadas do texto constitucional.

Estas, aliás, foram as conclusões a que chegou o Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento do RE 579.951-4/RN, em que se reconheceu a desnecessidade da existência de lei específica para se haver a antijuridicidade formal e material do nepotismo na administração pública à luz do princípio da moralidade inscrito no art. 37 da Constituição Federal – ensejando, inclusive, após a reunião de outros precedentes no mesmo sentido, a edição da súmula vinculante n° 13.

IV. Moralidade e Improbidade

Os atos da classe dos aqui questionados classificam-se imoralidade qualificada – a improbidade administrativa. Na ordem do que preceitua nossa Lex Mater, ensejam estes (uma vez julgados definitivamente, mediante o devido processo legal) suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, e o ressarcimento dos danos causados ao erário, “sem prejuízo da ação penal cabível”, na dicção do § 4º de seu artigo 37.

A probidade – para alguns, conceito mais amplo, que incluiria a moralidade – vincula hoje a retidão na atuação estatal de modo a até mesmo obrigar o agente a recusar cumprimento à ordem de superior hierárquico se manifestamente imoral. Assim, traz-se ao Direito Administrativo conceito análogo ao do Direito Penal, para o qual só exclui-se a punibilidade do agente em cumprimento de ordem legal se esta não era manifestamente ilegal (art. 22 CP). Certamente, ao juízo do homem médio não se questiona seja ilegítimo o uso particular de verbas (ou benefícios, como passagens áreas) públicas.

A probidade é um corolário da moralidade. Imoral o ato, configurará improbidade administrativa nos casos previstos em lei. Por isto que atos atentatórios aos princípios da Administração também foram conceituados como espécies de atos de improbidade administrativa pela Lei 8.429/92. Nela, o artigo 11 elenca condutas que configuram atos de improbidade administrativa por violação a princípios inerentes à Administração. Traz tal dispositivo, de forma expressa, que atentar contra os deveres de honestidade e lealdade constitui modalidade de ilícito. Por certo que o caso paradigma deste artigo – o uso de passagens aéreas dos titulares do Congresso para fins privados – subsume-se perfeitamente à esta hipótese. Afinal, na linha do já visto, não se reconhece como legítimo o exercício de competência funcional de forma desvinculada da única finalidade admissível: aquela que atenda diretamente ao interesse público. Não há outra finalidade de sua atuação que seja autorizada se não aquela de interesse público primário.

V. Moralidade condicionante da legalidade

Com isso, constata-se que, ao contrário do que pretendem nossos legisladores, não é preciso haver lei específica sobre o tema para que as práticas ora abordadas – o desvio de finalidade no uso de passagens aéreas das cotas dos parlamentar – possam ser classificadas como antijurídicas. Ademais, seria impossível legislar sobre cada hipótese fática potencial de desvio de finalidade na administração pública. Justamente para casos tais que se prestam os princípios jurídicos, valores maiores que sobrepujam ao resto do ordenamento, à toda atuação juridicamente relevante, vinculando-a.

Aliás, justamente por isso, o princípio da legalidade, no que atinente aos atos dos administradores públicos, possui particular conotação. Ao passo que para o administrado – os cidadãos em geral – é vedado fazer o quanto for proibido por lei, para aqueles há relação de subordinação. Isto é, para os particulares, basta a não-contradição às leis (ao ordenamento jurídico); já para a Administração, toda sua atuação é sub legem, ou seja, apenas pode fazer aquilo que a lei expressamente permitir. É o que se chama de estrita legalidade no Direito Administrativo, a vinculação da Administração ao direito posto.

Além de não poderem os atos administrativos inovar em relação à lei, “na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal”. E justamente quanto ao que foi dito acima, preleciona o ilustre e saudoso mestre: “Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”.

A moralidade é (deve ser) o próprio fundamento de validade do ato; mas é o fundamente de validade justamente em função da estrita legalidade. Ou seja, em face de não ser necessário que haja lei proibindo, basta que o princípio o faça.

Dito de outro modo: a moralidade condiciona a própria legalidade. Assim, a conduta não passa a ser legítima se autorizada por lei – pois a própria lei pode ser imoral. Assim, ela não encontrará fundamento de validade no ordenamento, tornando abusiva, ilegítima, qualquer conduta realizada com base em tal permissivo.

Neste sentido, o STJ em recente julgado reiterou decisão do TRF da 1ª Região, acerca de um ano de nomeação de filha de ex-presidente a cargo público. Já em decisão liminar, confirmada por sentença e depois pelo tribunal, entendeu-se que o ato (uma portaria), embora legal, contrariava o princípio da moralidade administrativa. No caso, havia uma burla indireta à regra do art. 117, VIII da Lei 8.112/90. Em seu voto, a Ministra Eliana Calmon citou o seguinte trecho do acórdão originário: “Já que agride abertamente a moralidade o Presidente da República nomear sua própria filha Secretária Geral, busca-se disfarçadamente, nomeá-la de forma oblíqua sob o manto da condição de Secretária Adjunta”.

Não se diga porém que, como os atos aqui questionados são de legisladores, não se subsumem a tais regras. Primeiramente porque, como visto, os princípios a todos os agentes públicos; depois, porque os atos praticados por nossos congressistas, objeto de nossas críticas, não são atos puramente legislativos. São atos que transcendem a competência precípua de tal poder (a legislativa), mas que é função também natural e inerente a todos os três. Em síntese, cada um tem aquela sua função fundamental, mas exerce também, excepcionalmente, as demais. O Judiciário, por exemplo., legisla ao criar seus regimentos internos, bem como o Executivo o faz por meio de MPs ou leis delegadas (ou ainda, decretos regulamentares). E assim, o Legislativo judica, na sua competência de julgar seus membros ou, et alii, os ministros do Supremo em certas hipóteses (art. 52, I e II da CF); bem como administra, ao praticar atos de execução de suas atividades. Aliás, a atividade administrativa (a princípio a função essencial do Executivo) é a mais executada pelos outros dois poderes em exercício excepcional de funções extrapolantes da sua. Assim, de uma ou outra forma, deveriam os congressistas subordinar seu agir aos princípios máximos da Administração Pública.

VI. Moralidade Administrativa Vinculante

De forma alguma admite-se, no atual estágio de avanço social e democrático, qualquer crítica à aplicação direta e imediata dos princípios – sejam os Princípios Gerais de Direito, princípios da administração pública ou especificamente o da moralidade. Como se tem dito, este último, especificamente, decorre de todo o sistema – e este, sistema, só existe porque estrutura-se em princípios. Deste modo, pretender atuação dos homens do Estado, ou a legiferação, alheias à força impositiva dos princípios, só seja talvez condizente com Estados autocráticos, unitários. O que certamente esperamos não ter aqui ainda (e novamente). No particular dos casos aqui genericamente discutidos (distribuição de passagens custeadas pelo Erário a familiares de membros do Congresso Nacional em viagens privadas; uso de telefones funcionais por familiares dos congressistas; uso de polícia do Senado para proteção de bens particulares; uso de auxílio-moradia por aqueles que possuem residência própria na sede do serviço onde lotados, etc. etc.), por certo que fica ainda sobremaneira fácil visualizar a imposição e aplicação prática de tal regra.

De fato o entendimento prevalecente hoje é de que, quando se fala em lei, compreende-se todo o Direito, inclusive seus princípios, conforme já foi dantes dito. Bem assim, leciona o já citado professor Hely: “(…) além da atuação conforme à lei, a legalidade significa, igualmente, a observância dos princípios administrativos”. Ou seja, dúvida não há de que os princípios vinculam o agir do administrador público – no caso, dos congressistas.

O princípio deve ser aplicado ao caso concreto de forma direta e imediata; de outro lado, a estrita legalidade determina que o agente público só pode fazer o que é autorizado por lei. Assim, se a circunstância viola a moralidade, não será admitido agir naquele sentido – e por agir tenha-se aqui, também, o legislar. Deste modo, prevalecem a estrita legalidade combinada à supremacia dos princípios; no conflito de leis (normas jurídicas lato sensu), utilizam-se os métodos tradicionais para sua solução. In casu, pelo método hierárquico (sendo irrelevante, assim, qual seja a mais nova). Em suma: num caso concreto, inda que haja lei admitindo certo ato, mas sendo ele imoral, será inconstitucional pela violação deontológica.

Assim sendo, a despeito de quaisquer atos das mesas das Casas do Congresso Nacional que pretendam dar roupagem formal a tais atos, é certo que tais práticas se vêem inescapavelmente maculadas de ilicitude, face aos princípios e regras jurídicas que regem o Estado Democrático Constitucional brasileiro, permanecendo à margem do ordenamento posto.

VII. Titularidade do Poder e Direitos Fundamentais

Não se deve também olvidar que titular do Poder no Estado Democrático de Direito é o povo. Os exercentes do Poder Executivo e do Poder Judiciário são seus mandatários, jamais detentores efetivos do Poder. Este, lhes é conferido pelo povo, que o exercem nos termos da Carta Maior do Estado. Assim, para que seja legítimo o exercício do poder de que foram investidos, devem faze-lo com probidade. Do contrário, violam direito individual dos cidadãos, que é ver os mandatários eleitos realizarem com lisura a atividade que lhes foi incumbida.

Isto pois, afinal, atuam sob mando dos cidadãos – o povo, titulares legítimos do poder. Esclarece esta idéia a colocação do Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello: a soberania popular, a exaltação da cidadania, instauram “o princípio de que todo poder emana do povo, de tal sorte que os cidadãos é que são proclamados como os detentores do poder. Os governantes nada mais são, pois, que representantes da sociedade” – que é exatamente o quanto dispõe o art. 1º, §ú, da Constituição.

Portanto, não se impõe aos cidadãos a sujeição a ordens, ou a aceitação de políticas públicas, ou ainda a anuência a certas decisões, quando não ajustadas às leis e princípios. Exsurge, em casos tais o direito individual de não se sujeitarem a decisões arbitrárias, conforme dito por Celso Antônio, demonstrando que também ele defende o entendimento de que estamos aqui a falar de verdadeiro direito fundamental.

Nesta linha de raciocínio, se falamos em exercício de uma atividade sob ordem do povo (o titular do poder cedido), temos um direito não só do povo como coletividade, mas também individualmente – de cada cidadão. Oras, temos então um genuíno direito fundamental – do povo, e individual – de cada cidadão. São, portanto, protegidos pela cláusula pétrea que a estes ampara (art. 60, § 4º, inc. IV da Constituição da República).

Deste modo, chega-se à conclusão de que os princípios elencados no caput do artigo 37 seriam de conteúdo irredutível, visto que configuram condição de exercício do direito individual da atividade política proba. Justamente por isso que, como já lembrado acima, podem ser exigidos por todo e qualquer cidadão por meio da Ação Popular – que é, em si mesma, garantia individual fundamental. Assim dizemos pois sua previsão está localizada topograficamente no Título II da Carta Maior (“Dos Direitos e Garantais Fundamentais”), em seu Capítulo I (“Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”). Salientando, ainda, que um de seus fins precípuos é anular ato violador da moralidade administrativa (v. na pág. 3 citação do dispositivo). Dessume-se disto que se está ali, e prevê expressamente tal princípio como uma de suas causas de pedir, é justamente porquê proteger tal princípio é um direito fundamental, direito individual. E assim, protegido pelo art. 60, § 4º, IV.

Na linha do direito fundamental à defesa do interesse público pela moralidade, já disse Gustavo Zagrebelski, que é vedada a sistematização rígida dos valores e princípios constitucionais, fundamentando a idéia de busca da ampliação dos direitos e garantias fundamentais, como forma de alcance de uma democracia mais legítima, mais participativa.

Todos os atos administrativos, para se justificarem no sistema, devem prestar obediência a TODOS os princípios gerais – do Direito e da Administração em particular. O seu núcleo essencial, inamovível, há de ser SEMPRE o dos direitos e garantais fundamentais. Atos do governo, que só é governo pela atribuição da Constituição (Carta do Povo, como se lê não só de seu art. 1º, § único, mas antes, em seu Preâmbulo), só são válidos plenamente se conformes à Ordem Constitucional; ou seja, suas regras, princípios e valores. É a Regra da Constituição.

Afinal, todo e qualquer ato em um Estado de Direito, seja ele de particular ou da Administração, só será válido em conformando-se aos preceitos que inspiram a ordem social vigente – que consubstancia-se, sumamente, na Norma Constitucional.

Dela que se extrai, primeiramente, o princípio da legalidade, que embora não absoluto (como em regra nenhum outro direito é absoluto) informa e conforma todos os demais. Todos correlacionam-se a ela, que é o fundamento de validade dos atos legítimos, inda que muita vez por via indireta. Assim, pode o ato indiretamente obedecer à legalidade – mas não se admite que indiretamente a desobedeça.

Portanto, qualquer ato tendente a contrariá-los é frontalmente inconstitucional, não sendo admissíveis em nosso ordenamento, compreendido que está o princípio da moralidade como reforço da devida legalidade que acompanha os atos administrativos, ampliando-lhe a compreensão, de acordo com o atual estágio da hermenêutica publicista. Hoje, ao se falar em legalidade e em juridicidade (licitude) em matéria administrativa, há que se levar em conta todo o sistema, no qual ocupam posição de proeminência os princípios reitores. Dúvidas mais não há quanto ao fato de que os princípios constitucionais vinculam direta e inescusavelmente o agir do administrador público – no caso, dos congressistas. Interpretam-se as leis e atos a partir da Constituição, e não a Constituição a partir das leis. Deste modo, desnecessário que sejam os princípios objeto de ato legislativo ordinário para terem força normativa. A Constituição o tem de modo mais que bastante!

VIII. Do direito fundamental à boa administração

O sempre agir com moralidade, tendendo aos fins da República, é consagração da necessária vinculação dos direitos fundamentais – que no Direito Administrativo impõem-se por força das idéias consagradas no princípio da boa-fé (na Administração Pública) – justamente o repetido direito fundamental à boa administração pública.

Seguindo esta linha, Celso Antônio Bandeira de Mello, referindo-se a trabalho monográfico de Juarez Freitas, afirma justamente este caráter vinculante do direito fundamental à boa administração. Segundo o administrativista gaúcho, é “o direito à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas”.

Este caráter vinculante daquele fundamental direito, de forma direta e imediata, já foi salientado na citada obra de Juarez Freitas. A isto agregue-se o conceito de que a moralidade é a consagração do princípio da confiança e da boa-fé na Administração. A exigência do agir ético é execução e consecução de tais princípios (confiança, boa-fé e moralidade, que são interdependentes, conforme já gizado).

Disse-o assim também o grande Ingo Wolfgang Sarlet, que afirmou vincularem os direitos fundamentais todas as formas de atividade (atuação) dos órgãos administrativos. Realçou ele a natureza de direito fundamental da observação dos valores (e princípios) constitucionais pelos diversos órgãos públicos

De forma límpida expressou o caráter fundamental do direito à boa e lídima administração Juarez Freitas, na já mencionada obra, consignando que “a tal direito corresponde o dever de a Administração Pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem”. Na linha do que aqui já dissemos relaciona ele também, de forma íntima e interdepentende, a moralidade e a boa administração, consubstanciando verdadeira soma de direitos subjetivos públicos.

Para Celso Antônio, o princípio da eficiência (arrolado no caput do artigo 37 da Carta Maior) reflete-se no princípio da boa administração; para o ilustre mestre, teria aquela (eficiência) mais esta conotação. Diz ele: “fato é que o princípio da eficiência não parece ser mais do que uma faceta de um princípio mais amplo já superiormente tratado, de há muito, no Direito italiano: o princípio da “boa administração”. Este último significa, como resulta das lições de Guido Falzone, em desenvolver a atividade administrativa “do modo mais congruente, mais oportuno e mais adequado aos fins a serem alcançados, graças à escolha dos meios e da ocasião de utilizá-los, concebíveis como os mais idôneos para tanto”. Tal dever, como assinala Falzone, “não se põe simplesmente como um dever ético ou como mera aspiração deontológica, senão como um dever atual e estritamente jurídico”. Em obra monográfica, invocando lições do citado autor, assinalamos esse caráter e averbamos que, nas hipóteses em que há discrição administrativa, “a norma só quer a solução excelente”. Juarez Freitas, em oportuno e atraente estudo – no qual pela primeira vez entre nós é dedicada toda uma monografia ao exame da discricionariedade em face do direito à boa administração-, com precisão irretocável, afirmou o caráter vinculante do direito fundamental à boa administração”.

IX. Do Princípio da Proteção da Confiança – A Boa-Fé do administrado na Administração

Outro importante ponto a se salientar, que dá ainda mais fundamento à toda tese aqui esposada, foi a evolução doutrinária quanto à aplicação dos princípios gerais de direito à Administração, conformando-os ao Direito Administrativo.

A segurança jurídica, exponencial valor do Direito, adaptada ao Direito Administrativo levou à extração do princípio da confiança. Este, nada mais é que o revés público do princípio da boa-fé. Assim, a boa-fé do administrado na lisura dos atos da Administração leva à confiança de que pode fiar-se às manifestações já exaradas por ela.

Canotilho provavelmente foi quem melhor expressou este entendimento, pelo que devemos cita-lo textualmente:

“Estes dois princípios – segurança jurídica e protecção da confiança – andam estreitamente associados a ponto de alguns autores considerarem o princípio da protecção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante ‘qualquer acto’ de ‘qualquer poder’ – legislativo, executivo e judicial.”

Hely Lopes Meirelles, em seu Direito Administrativo Brasileiro, também anotou a Proteção da Confiança. Primeiramente, mencionando o próprio Canotilho, refere-se ao princípio da segurança jurídica, tido como uma das vigas mestras do Estado Democrático de Direito (em análoga conclusão à de Celso Antônio, que o qualifica efetivamente como o mais importante dos princípios gerais de direito). Logo adiante, explica que a evolução da segurança jurídica levou a entendê-la como princípio da boa-fé dos administrados, ou ainda – justamente – da proteção da confiança. Em seguida, referindo-se ele também a Juarez Freitas, fala da complementação recíproca que se fazem os princípios da boa-fé e o da confiança (proteção da confiança do administrado na Administração), com o da segurança jurídica. De fato, interrelacionam-se a ponto de não ser possível distinguir um sem o outro; i.e., são elementos indissociáveis, complementam-se.

Fato é que estes princípios, estas exigências, extraem-se do próprio princípio da moralidade, hoje constitucionalizado. Já disse o eminente constitucionalista carioca Luís Roberto Barroso que o princípio da moralidade “impõe aos agentes públicos o dever geral de boa administração, do qual decorrem, dentre outros, os imperativos de honestidade, atuação vinculada ao interesse público e boa fé. Isso porque os agentes públicos administram bens que não são seus devendo, como agentes delegados que são, atuar em nome, por conta e a bem do interesse público” (destacamos). Salienta ele, como se vê, outro dos requisitos essenciais de validade do ato administrativo – a finalidade. Afora do interesse público primário, o ato só será válido se, no interesse público genérico, coincidir com o primário. Falemos, então, da motivação e da finalidade do ato administrativo, outros de seus requisitos essenciais.

X. Da Motivação

Outro fundamento para a anulação dos atos praticados pelos parlamentares (sem olvidar-se das demais conseqüências legais, como a restituição dos valores, etc.) é sua absoluta falta de fundamentação. Conforme já foi antes dito, o uso de verbas públicas (dentre as quais as parlamentares) deve render toda obediência necessária ao uso de res publica que é. Não sendo eles donos da coisa pública, mas sim simples gestores de interesses de toda a coletividade, devem motivar seus atos também no que respeita ao uso do erário.

Note-se, que o dever de motivar decorre da própria moralidade administrativa. Em um Estado Democrático de Direito, no qual “todo poder emana do povo” e os agentes públicos não são os “donos” do poder (da coisa pública) – mas sim gestores dos interesses da coletividade, inadmissível que alguma decisão seja tomada, algum ato realizado, sem que os legítimos titulares tenham conhecimento de suas razões.

Sobremaneira, como os atos questionados refletem exercício de competência discricionária, a fundamentação é requisito essencial de validade; sua ausência os inquina pela invalidade. Neste tipo de ato, a vinculação impõe-se, justamente por força do preceito da lei – da legalidade maior, a constitucionalidade, força num Estado Democrático de Direito.

Não há, no exercício de competências discricionárias, liberdade absoluta. Se há liberdade há sua limitação, exercida ao menos pelos princípios do direito e pelos direitos fundamentais. Na linha da lição de Juarez Freitas, discricionariedade absoluta mostra-se incompatível com a idéia do exercício legítimo de um poder. O poder só é legítimo dentro dos limites impostos pela ordem constitucional, pelo Estado de Direito. Fora deles, é poder arbitrário, em desvio – e então poder ilegítimo e inconstitucional. Conforme referência extremamente pertinente feita por aquele autor, o agente público assume “o compromisso de exercer o poder estatal de acordo com os princípios orientadores do ordenamento jurídico que o investiu no cargo e de onde lhe advém a força da decisão”.

Nada obstante, não se reconhece mais, na atualidade, motivação como dever (responsabilidade) apenas no tocante aos atos discricionários. Como atos humanos que são, e ante a impossibilidade -e desnecessidade- de absoluta rigidez e integral descrição do comportamento na norma (o que só levaria a agentes automatizados, robóticos) até mesmo os atos vinculados comportam certa margem de discrição.

A necessidade de motivação serve como autocontrole para o próprio agente, que deve bem apreciar sua decisão, cercando-se de garantias que a dêem sustentação no sistema. Deste modo demonstrará que seu agir não está alheado, mas ao contrário, inserido e justificado naquele.

A verdadeira liberdade é SEMPRE regrada, em qualquer campo da vida. Liberdade sem limites, por paradoxal que pareça (prima facie apenas), aprisiona. Tal qual o jovem, que precisa de – e “pede” por – limites para forjar o seu caráter, sua personalidade, assim ao agir da Administração Pública deve impor-se limites. É dentro dos limites que se tem dimensão da liberdade, e não fora deles. Os limites trazer segurança, que gera confiança. A estipulação de limites -de modo razoável- confere legitimidade. Ademais, no Direito, a fixação e o respeito aos limites é a própria pedra angular concretizadora do Estado Democrático – pela legalidade, pela legitimidade, etc. Liberdade sem limites consubstancia ausência de regulação, o que não se harmoniza com o Estado de Direito. Ao contrário, torna-se pura libertinagem, verdadeira anarquia, ausência absoluta de valores.

Ademais, a motivação se faz sempre necessária para permitir o controle –homólogo ou heterólogo- do ato administrativo. Enseja, com tal procedimento, a observação de sua vinculação aos fins admitidos, sua adequação ao sistema.

Maior a regulação (sindicabilidade, no dizer de Juarez Freitas), melhor o controle; o que, a seu turno, leva a incremento na confiança do cidadão em seu administrador, ensejando maior eficiência e produtividade, e assim, maior liberdade do agente, pois sente-se respaldado em sua atuação.

Na conjuntura do direito fundamental à boa administração, no contexto do direito britânico já foi dito que “dar razões é um dos fundamentos da boa administração”, que “in interests of fairness, reasons must be given”.

Cabe, por fim, mencionar excelente julgado do STJ, em que se afirmou que “mesmo diante da margem de liberdade de escolha da conveniência e oportunidade concedida à Administração, é necessária adequada motivação, explícita, clara e congruente, do ato discricionário (art. 50, I e § 1º da L. 9.784/99) que NEGA, LIMITA ou AFETA direitos ou interesses dos administrados”. Conforme se vê, nossos tribunais superiores compartilham do entendimento aqui defendido.

Bem foi dito por Celso Antônio, salientando outra garantia fundamental dos cidadãos em face da Administração, que o dever de motivar impõe-se como direito individual a não sujeição à decisões arbitrárias. De fato, somente devem conformar-se àquelas que estejam adequadas à lei, sendo direito político dos cidadãos o esclarecimento dos “porquês” – i.e. a exigência de motivação.

XI. Do desvio de finalidade ou do abuso de poder, decorrentes da falta de motivação legítima

Decorre logicamente do que vimos acima, da falta de motivação a conferir legitimidade aos atos administrativos, que incorrerá em desvio ou abuso de poder o agente que de tal modo atuar. A falta de motivação, ou a objetivação de finalidade que não se coadune com o interesse público, ligam-se aos vícios do desvio ou do abuso de poder.

Não importa, para que restem configurados, se o agente efetivamente quis ou não alcançar finalidade outra; releva em importância, apenas, se de fato escapou o ato à finalidade pública, legal. Mesmo se moral e justo numa concepção ampla, será inválido se deixar de perseguir a orientação legal expressamente prevista para tais e quais espécies de atos. Cada espécie de ato administrativo tem uma finalidade própria, que o caracteriza. Não pode, deste modo, ser usado um em lugar de outro, buscando alcançar finalidade diversa.

Uma autorização não pode ser aplicada a situações que exigem procedimento de concessão administrativa. Ou tomemos ainda outra hipótese, que melhor esclarecerá a idéia: as desapropriações por interesse público devem clarificar precisamente qual o público interesse que se busca na determinada situação. Se foi a desapropriação determinada para a construção de uma creche, que era o que fazia falta à comunidade local, não pode depois ceder lugar à construção de um hospital, se já há outro na região.

O desvio de finalidade decorre de mau uso de competências, quando visam –e atingem- finalidade diversa da admitida. E será abuso de poder quando isto ocorrer tendo por base um ato que extrapola as competências do agente. Deste modo, se busca a outra finalidade, mas o ato enquadra-se dentro das atribuições do agente (o ato, não o fim, que fique isso claro), há desvio; porém, será o desvio qualificado a abuso caso sequer o ato praticado fosse legítimo (em si mesmo, ou para aquele agente). Aplicando isto ao caso prático em que vimos nos estribando, ocorreria na hipótese de, além do desvio da finalidade na utilização das passagens aéreas, a autoridade pública ainda determinar ao agente da alfândega no aeroporto que não processe às suas atribuições de praxe.

O exercício de competência discricionária (e com mais razão, de vinculada) encontra limite na legalidade e na finalidade – não só a finalidade dada como fundamentação, mas aquele que realmente se alcançou. O óbice ao desvio de poder origina-se, sobretudo, de serem os interesses públicos indisponíveis para a Administração. Esta indisponibilidade é um verdadeiro direito fundamental; tal fundamental direito nada mais é que a outra face do princípio da boa-fé do administrado na administração. Podemos até mesmo afirmar que é a indisponibilidade um dos fundamentos do direito à boa administração.

Decorrendo a boa administração do fato de serem as autoridades estatais representantes dos titulares do poder (o povo), a indisponibilidade de seus interesses (finalidade pública, de tal povo) é um corolário natural.

Nos dizeres, outra vez, de Celso Antônio Bandeira de Mello, a indisponibilidade dos interesses públicos é um princípio fundamental. De fato assim pode-se classificá-lo visto que dele também decorrem a boa administração e o princípio da confiança, andando lado a lado com a titularidade do poder pelo povo. No fundo, tudo decorre deste fato, desta verdade histórica – tantas vezes distorcida pelos exercentes do poder: o poder emana do povo; o Estado existe em função de seus cidadãos, e para ele, unicamente, deve guiar seus comportamentos.

Em suma: se o poder é do povo, seus interesses obviamente serão indisponíveis por aqueles que o representam. Deste modo, pela confiança depositada pelo povo, a boa administração faz-se fundamental direito. Verdadeiramente integra a própria competência que lhes é outorgada. Compõem-na uma face positiva (o que pode, deve buscar) e outra negativa (a direção em que é vedado seguir). O legítimo exercício da competência administrativa só ocorre quando baseada na boa-fé, quando for boa administração (aos olhos do povo, claro). Do contrário, não sendo lídimo o exercício da competência, haverá incursão em desvio de poder – autorizando, de tal modo, a nulificação do ato e a responsabilização (punição) do agente (dos responsáveis).

Normalmente vislumbram-se, nesse contexto, atos restritivos de direitos, isto é, aqueles que importarão em algum prejuízo, alguma perda, algum limite. Todavia, há quem defenda que não só os atos administrativos restritivos de direitos, mas também os ampliativos devem ser nulificados, quando decorrem de desvio ou abuso de poder. É justamente o que propugnamos para os casos aqui utilizados como base de nossa crítica – que estenderam um direito, a quem ele não era devido. Dentre os que comungam desta visão está o mesmo Celso Antônio, que faz menção a outro exemplo da história política brasileira recente: o uso de aeronaves públicas para fins particulares. Na legislação temos o exemplo da lei do processo administrativo federal, já antes citada (L. 9.784/99); seu artigo 50, ao mesmo tempo que traz a inovação de expressamente prever a exigência de motivação, traz um restrito e restritivo rol de casos. O inciso I fala justamente das hipóteses de atos restritivos – quando “neguem ou limitem” direitos ou interesses. No entanto, fala também em atos que os “afetem”; o uso deste termo genérico pode ser usado na defesa do argumento esposado: atos que ampliem direitos, além de seu alcance original, também devem prever motivação idônea.

XII Inexistência de direito adquirido contra a constituição

Frise-se, ainda, que por mais que tal prática (e outras, igualmente escusas) tenha sido reiterada no tempo pelos congressistas, isto não confere a ela legitimidade, qual se fosse um costume consagrado pelo direito. Bem se sabe que não há direito adquirido contra legem, ou contra a constituição. Assim inclusive já teve a oportunidade de decidir nossa Suprema Corte. Em precioso julgado sobre o tema, afirmou aquela corte que “a supremacia jurídica das normas inscritas na Carta Federal não permite, ressalvadas as eventuais exceções proclamadas no próprio texto constitucional, que contra elas seja invocado o direito adquirido”

Portanto, conclusão outra não há senão de que têm agido nossos parlamentares em desvio de poder, por meio da prática de condutas imorais e, assim, antijurídicas. Vedadas pelo ordenamento pátrio, suas condutas que extrapolam os poderes que lhes foram legitimamente conferidos devem ser tidas como nulas. Nulificadas, de forma a que não gerem efeitos – visto que um ato nulo não pode, legitimamente, gerar efeitos –, com os sucedâneos naturais da punição administrativa (interna corporis e pelo controle externo) e da restituição dos valores indevidamente subtraídos do erário sem descuidar das demais punições previstas em lei. Frise-se que um mesmo fato pode dar origem a processos de naturezas diversas: administrativa (como aqui mencionado), civil e criminal. São esferas distintas, independentes.

Aliás, cabe acrescentar que, segundo nosso particular entendimento, talvez ainda minoritário, deveria sempre em casos tais ser conferida ampla divulgação dos nomes daqueles que agiram dessa forma, de sorte a que o eleitorado saiba quem são os que têm o hábito de, no silêncio, aproveitar-se dos favores que lhes são concedidos, deles abusando e desviando-se de seus fins.

XIII. Conclusão

Diante de todos os argumentos aqui esposados, dos raciocínios elaborados, resulta que a verificação da validade de um ato administrativo é muito mais ampla do que simplesmente pela legalidade. Primeiramente, porque a legalidade ao administrador é outra que ao administrado: à este, é permitido fazer tudo quanto a lei não expressamente proíba; e aqui, provavelmente, o erro de nosso parlamentares, que confundem o poder que exercem com sua qualidade de cidadão. A eles, como administradores, dado que aos agentes públicos em geral, só é permitido fazer aquilo quanto a lei expressamente preveja. Seu agir é o de interesse público, com fins expressamente previstos. Outros fins que dêem a seus atos serão manifestamente antijurídicos.

Depois, pudemos constatar ainda que vinculam os atos da Administração Pública as diretrizes constitucionais, notadamente os princípios gerais de direito – previstos expressamente ou não na Carta Magna. Não só porque o § 2º do art. 5º faz menção a outros direitos e garantias que não os ali previstos, mas porque isto decorre naturalmente do Estado Democrático de Direito. O que for para ampliar garantias e direitos fundamentais, é válido; o que for para ampliar interesses espúrios, ou melhor, o que for interesse espúrio, é vedado – por força do sistema, sem necessidade de previsão específica.

A criatividade humana é ilimitada; infelizmente, por vezes a vemos utilizada para maus usos da coisa pública. Por isto que, numa democracia, incabível exigir vedação expressa a todas as condutas ilícitas passíveis de serem realizadas na gestão do patrimônio público. Bastam as vedações gerais, decorrentes dos princípios e regras gerais.

Para ampliar a possibilidade de controle sobre tais atos que também a motivação torna-se parte essencial dos atos administrativos, praticados de forma legítima. Legítimos serão se motivamos, usando por alicerce os arrimos de sustento do Estado de Direito. Devem ter sempre por base a Lei Maior, bem como os princípios gerais de direito, do Direito Administrativo, as noções de dignidade e o princípio amplo do direito à boa administração, ínsito à forma democrática vigente.

A moralidade, por isto, é uma das principais condicionantes, pois irradia seus efeitos às mais diversas áreas, sendo verdadeiro fundamento de validade de qualquer ato da Administração.

Dessarte, conforme defendido, consagra-se como direito fundamental à boa administração a exigência de conduta lícita, lídima, proba, moral e moralizante por aqueles que exercem os poderes do Estado.

Disse uma vez Rui Barbosa que se pronuncia a lei escrita; mas que não consta que algum sistema moral contenha lei que admita ao administrador fazer mau uso do bem público que lhe cabe gerir. E colacionou o irônico provérbio que diz que quem furta é ladrão, quem muito furta, barão. Esperamos, pois, que alguma luz, Divina quem sabe, ilumine os membros de nosso Congresso Nacional…

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